29
Jun 08

Vitrines

Atraindo voyeuristicamente o passante, os objetos expostos na vitrine são desfrutados a distância, perversamente.
As vitrines são um dos elementos de maior poder de sedução no espaço urbano. O produto ali exposto surge num espaço virtual quase metafísico, que os deixa em posição intermediária, nem dentro da loja nem na rua. Entre o objeto e a rua uma parede invisível, o vidro. Translúcido, como fosse uma barreira de ar congelado, o vidro permite ver o objeto, mas não tocá-lo. A vitrine fascina e seduz. Castrados pela impossibilidade momentânea de efetivar a posse, dá-se o impasse descrito em nota por Marcel Duchamp.


“A questão das vitrines. Submeter-se à interrogação das vitrines. A exigência das vitrines. A prova da vitrine da existência do mundo exterior. Quando alguém se submete ao exame da vitrine, este alguém pronuncia também sua própria sentença. De fato, a escolha desse alguém é uma viagem de ida e volta. Das exigências da vitrine, da inevitável resposta às vitrines, minha escolha é determinada. Nenhuma teimosia, ab absurdo, em esconder o coito através do painel de vidro com um ou vários objetos da vitrine. A pena consiste em cortar o painel e sentir remorso tão logo a possessão é consumada.”

À vitrine, como à publicidade, só interessa quando se age num primeiro impulso, sem que os anseios sejam saciados. Procura-se, como estratégia, manter-se sempre o desejo de consumo e a frustração.
Em caso comum, a frente da loja é ocupada na maior parte pela vitrine e a entrada é mantida fechada por uma porta de vidro. Evita-se que a parte interna da loja fique devassada, a barreira é proposital e espera ser rompida. Com a luz do dia a arquitetura e o movimento da rua refletem sobre o vidro, que parece engolfar o espaço. Deslocando-se diante da vitrine tem-se a sensação que o objeto também se move ocupando planos diferentes. À noite, com pouca luz, tem-se a pupila dilatada e conseqüentemente a visão das coisas desfocada. A vitrine iluminada possibilita recuperar o foco justamente ao se olhar o objeto exposto, que nítido, ganha aura.

No poema “Vitrina” Guilherme de Almeida escreveu:

A mocinha parou um instante

Junto do alto cristal da vitrina

Namorando um “soutien” fascinante

E umas pernas de seda franzina.

E não viu o automóvel brilhante

Que dobrou silencioso uma esquina

E parou atrás dela um instante.

Nem ouviu o que disse a buzina

Namorando um “soutien” fascinante

E umas pernas de seda franzina

Enguiçados e extáticos diante

Daquele alto cristal de vitrina.


14
Mar 08

a dura poesia concreta numa esquina de vitória

Giacomin, Rogério Camara, Vitória, ES, 2003

Emoldurada do céu que tende à grandeza do infinito e encarcerada entre postes, fios, gatos, alhos e bugalhos. Do ambulante que faz das laterais dessa parede sua vitrine. O vão evidente e o concreto aparente emprestando a forma mutável da reformável legis de uma inscrição urbana.

O que a antropogeografia mostra, são sucessivos desgastes de energias na busca de novos padrões. Formas ainda rígidas, de projetar, construir, organizar e vivificar a cidade.

Estabelece-se o fluxo, o afluxo. Dividem-se setores para atividades as mais diversas e avança-se na descoberta de novos materiais que não só revolucionam o processo de construção, como a cada momento transformam a maneira do empilhamento dessa massa supostamente amorfa que deveria dar vida, cor, movimento e geração de atividades em cadeia a essa urbe que, pensada dessa maneira, não passa da estabelecida e fria projeção de Mercator, onde linhas retas possuem intervalos fixos sem adaptatividade ou interferência. Talvez se possa arriscar, ignorantemente, a marcar tal teoria como uma vertente geratriz do discurso do fluxo, do entrever, do devir, da deriva e da virtualidade, dando, ao espectro criador, um sentido ilimitado de perpetuidade.

A cidade caminha e é adaptada pelo seu vivente. Esse objeto humano age, corrói, se aglomera, pratica a mercancia, trafica, mete medo, constrói entre, forma novas estruturas de abrigo e rompe como uma geóclase. Tudo o que não pode ser visto, mas que acaba comandando uma nova ordem de discurso social, compondo esse novo puzzle do inevitável que engolfa e recria a receita projetada sem o saber dos arquitetos, que se digladiam solitariamente a cada imposição de mudança.

Equação mais difícil e intricada, pois a cidade é essencialmente produtora de vazios. Já o ninguém, não produz vazios, nem silêncios. Ele forma a turgescência que faz pensar novamente a cidade, a textura da urbanicidade.