17
Mar 08

Cartografia IV

“Eis agora a questão fundamental de qualquer atlas: de que é que se deve traçar um mapa? Resposta evidente: dos seres, dos corpos, das coisas… que não conseguimos conceber de outro modo. Porque é que, com efeito, nunca desenhamos as órbitas dos planetas, por exemplo? Uma lei universal prevê as suas posições: de que é que nos serviria um roteiro neste caso de movimentos e situações previsíveis? Basta deduzi-los da lei. Pelo contrário, não há qualquer regra que prescreva o recorte dos rios, o relevo das paisagens, a planta da aldeia onde nascemos, o perfil do nariz ou a impressão digital do polegar…Aí estão singularidades, identidades e indivíduos, infinitamente afastados de qualquer lei.” (Michel Serres. Atlas)


14
Feb 08

Cartografia III

Lima Barreto, num conto intitulado “Como o ‘homem’ chegou” em cuja epígrafe transcreve a singela frase de Nietzsche “Deus está morto; a sua piedade pelos homens matou-o”, relata a prisão de um louco pacato, “lá dos confins de Manaus, que tinha a mania da Astronomia e abandonara, não de todo, mas quase totalmente, a terra pelo céu inacessível.” A prisão se deu para dar destino aos regulamentos policiais que “não encontravam emprego” em uma delegacia de “movimento desusado” em “circunscrição” por demais pacata e ordeira.

Quando o delegado, sediado no Rio de Janeiro, recebeu as ordens para que fosse buscá-lo, argumentou que era muito longe. A isto o inspetor retrucou que já se havia verificado a distância no mapa “e era bem reduzida: obra de palmo e meio.” E, assim foi, em distância medida por palmo e polegadas, o carro-forte puxado por um burro “abalando o calçamento, a chocalhar ferragens, a trovejar pelas ruas afora em busca de um inofensivo.” No carro-forte ia, além do cocheiro, um certo doutor Barrado esforçado “por parecer inteligente”, dando a tudo caráter científico.

No fim de quatro anos e doze polegadas da cartografia que se desdobraram em um infinito número de quilômetros, “o carrião entrou pelo Rio adentro, a roncar pelas calçadas, chocalhando duramente as ferragens, com o seu manco e compassivo burro a manquejar-lhe à sirga”. Do ‘Homem’, que não fora no trajeto alimentado, pois os agentes não tinham com segurança uma norma de proceder, chegou o esqueleto.

A instituição cumpriu assim, religiosamente, a fria letra da lei. Do mesmo modo que comprrendeu o mundo codificado pela cartografia.


13
Feb 08

Cartografia II

No alto à esquerda mapa do metrô de Londres utilizado na década de 20.
Acima à direita primeiro desenho realizado por Harry Beck em 1913.
Abaixo o mapa aprovado em 1933.

Nos comentários feitos no post anterior surgiu a comparação entre o mapa proposto inicialmente com o mapa do metrô de Londres e, como denunciou Ricardo Gomes, a relação não era tão cabível. Ilustro aqui o mapa do metrô embora ele já tenha sido exaustivamente reproduzido e estudado em diversas publicações de design.

O mapa expressa a face estética do modernismo quando vinculada ao caráter industrial/urbano que se evidenciava na época. No século XIX assiste-se ao advento da formação das grandes cidades e a humanidade entra no século XX marcada pelo signo das metrópoles. Em Londres e Paris multidões moviam-se sob a superfície da cidade. Submergiam em um ponto e saiam em outro. Entre os pontos o percurso sob a vida frenética da cidade, num túnel negro iluminado, sentados, em inércia, um cidadão frente ao outro olhando através.

Publicidades do metrô de Londres utilizavam-se de expressões como “centro nervoso, força”. Em um dos cartazes, representa-se um punho e a eletricidade correndo nas veias. Foi a partir de códigos usados em plantas de circuito elétrico que o Engenheiro-projetista Harry Beck desenvolveu um novo mapa para o metrô de Londres em 1913 que, não tendo sido aceito na época, só viria a ser aproveitado em 1933. O desenho utiliza somente linhas verticais, horizontais e diagonais com os ramais diferenciados por cores. Ignora as posições geográficas exatas em prol da eficiência comunicativa. O centro de Londres foi ampliado para que fosse reproduzido com clareza todas as suas linhas e estações, enquanto as zonas periféricas aparecem reduzidas e com as estações eqüidistantes. Mesmo o rio Tamisa, única referência geográfica de superfície presente no mapa, tem o seu percurso rigorosamente representado em linhas paralelas aos ramais. A partir de 1913, Beck dedicou vinte e nove anos ao mapa, simplificando-o até que pudesse compreender todas as extensões do metrô no formato de uma carteira de identidade, legível nas partes e no todo “a um só golpe de vista.”


04
Feb 08

Cartografia

Em tempos de fluxo de bens e de pessoas alguém já deve ter imaginado, ou realizado, um mapa no qual o mundo é representado em função do tempo de transporte físico, e não do espaço. Nesse mapa as diversas regiões poderiam sofrer contrações e dilatações ao sabor das intempéries que ocasionam o fechamento de aeroportos e de vias. Ainda assim, a Europa tenderia a ser diminuta. Paris e Londres se interceptariam. Entre Londres e Nova York o oceano Atlântico se espremeria à espessura de um mar. A África seria enorme. Algumas cidades seriam afastadas de suas visinhas. Outras apareceriam fora de seu país, ficando isoladas e reservadas àqueles que voam para o exótico. Afinal, quem está dentro e quem está fora?