Neste mês de dezembro deixei de morar em Vitória no Espírito do Santo, onde lecionei por 6 anos na Universidade Federal. Isto me remete, com alguma nostalgia, às primeiras impressões que tive desta cidade.
Minha primeira noite na cidade foi em um Hotel com vista para a praia de Camburi. Do lado esquerdo da praia se via, ao longe no horizonte, o porto de Tubarão, que fica em um dos extremos da estrada de ferro Vitória-Minas e nele os navios são carregados de pelotas de minério. Pelotas que são produzidas numa usina localizada na área do porto a partir do minério bruto que chega de Minas. No outro extremo da praia, do lado direito, uma pequena ilhota, na qual se encontra uma pequena casa.
Vi, assim, de um lado, um cenário próximo ao de uma cidade dos tempos da era industrial no qual se evidenciava o seu principal agente de emprego e produção: no caso a Companhia Vale do Rio Doce com chaminés e grandes navios. A fumaça vindo em nossa direção indicava o sentido do vento e, mais tarde pude observar a quantidade de minério que respirávamos. Uma espécie de ato de distribuição de renda da Vale. Minério para todos!
A ilhota no outro extremo representava, por sua vez, algum isolamento ou elo com um tempo mais longínquo, com se ali estivesse quieto o Robson Crusoe.
Vitória parece ser uma cidade compacta e portátil. Algo que poderia, a qualquer momento, ser carregada pelos imensos cargueiros que se agigantam na paisagem e se colocam a duas braçadas de distância. Do mesmo modo tive a impressão de poder dar um tapa nos aviões que passavam sob minha cabeça. O eco dos portos dia e noite no coração da cidade e o ronco das turbinas dos aviões me faziam imaginar uma cidade que se projetava sempre para além dela, desarraigada. Juntava-se a isso a dificuldade de encontrar na cidade pessoas que tenham nela nascido. Em seus mais de 460 anos Vitória parecia não ter gerado filhos. Talvez por esta sensação de desterro e de falta de identidade encontremos, como por reação, reiteradamente espraiada nas páginas dos jornais locais a palavra ‘capixaba’. O lugar que me parecia sem lugar reagia sempre afirmando o seu lugar.
A escala me permitiu transitar no tempo da bicicleta e do passo. Transformar caras em rostos. Ir da massa abstrata às pessoas.
cidade
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Dec 08
Vitória ES
29
Sep 08
Brasília utópica
Rogério Camara, Brasília, setembro de 2008
Encontra-se na praça central do Conjunto Cultural da República em Brasília o texto “Utopia da Modernidade” Este em letras moldadas em madeira com tamanho e inclinação que permite confortável leitura a partir de um carro que deslize sob o eixo monumental ou, quem sabe, de um avião cuja sombra cobre com precisão a cidade.
Sempre se falou de Brasília como uma cidade utópica, utópica por se pensar construir o presente com cabeça num futuro ideal. Um mundo pensado, imaginado ainda sem um dado de vivência. Com lucidez Clarice Lispector traduziu a cidade no ano de sua inauguração em 1960: “Brasília é construída na linha do horizonte. Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar e depois o mundo deformado às nossas necessidades. Brasília ainda não tem o homem de Brasília.(…) Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil: eles ergueram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério.”
Lucio Costa comenta que a idéia “surgiu quase que pronta” de um risco simples em movimento cruzado que marca um local e quer fazer dele um lugar: “Nasceu de um gesto primário de quem funda um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”.
A absoluta simplificação: o sinal da cruz, o símbolo absoluto. O eixo vertical e horizontal, que simbolicamente expressam o eixo do poder e o da vida.
Conquista-se neste gesto a simplificação dos fluxos com apenas um único entroncamento. Uma cidade geométrica, que elimina as ruas e as calçadas. Privilegia-se o carro, que se movimenta sob leis e traçados rigorosos, esquivando-se dos movimentos adversos e imprevisíveis dos pedestres.Uma cidade apreensível pelo todo, sem barreiras. São poucos os dados a processar, não é preciso muita memória. Funcional – deslocamentos regulares: trabalho, casa, laser.
Brasília é uma imagem, um símbolo, um logotipo. Foi pousada num planalto, longe de qualquer civilização. Totalmente arejada, sem nenhum vestígio de outra cidade, nenhuma montanha, nenhuma mancha à volta. Empoleirada “na linha horizonte” envolvida somente pelo céu – uma cidade totalmente espiritual. O nada e todas as cores.
Elimina a presença de linhas verticais, nivelando a prumada dos prédios. A vastidão sem referência de profundidade, pode-se bater no céu ou nunca alcançá-lo. Salientes, apenas os prédios públicos, inscritos no espaço como caligramas por Oscar Niemeyer.
Lucio Costa arqueia o eixo horizontal, o das residências e dos serviços, “a fim de contê-lo no triângulo que define a área urbanizada”.Os arquitetos arquitetam e exercem sobre o papel. Idealizam uma constelação perfeita, com os movimentos deduzidos à lei. Cada unidade em sua órbita dimensionada em toda extensão de suas funções. Como em Um Lance de Dados de Mallarmé, as áreas arejadas, os brancos que, segundo ele, “assumem importância, (…) a versificação os exigiu, como silêncio em derredor (…) não transgrido essa medida, tão-somente a disperso”. Todas as unidades prismam-se “nalguma cenografia espiritual exata”. Entretanto, a intenção dos arquitetos de positivação, de definitividade dos espaços da cidade diferencia-se do poema de Mallarmé. Um Lance de dados não se fecha numa logotipia. O mundo verbal é naturalmente ambíguo, plural, fenomenológico e, além disso, o poema de Mallarmé é uma forma aberta que contém uma pluralidade de leituras.Ele foi concebido estereograficamente, onde figuras radiantes podem ser vistas como orifícios rompendo o limite do espaço. Espaços de reversibilidades, interjeições, negações, a ausência da idéia. No projeto de Brasília traça-se o ideal, em planta baixa, de uma cidade sem vão, sem ocos, sem buracos. Todo espaço deve estar destinado, funcionalizado, sem usos estranhos. Os arquitetos imaginavam que pudessem retirar do mundo, da cidade, das pessoas tudo aquilo que fosse inominável, imperfeito – feio. Se possível fosse, chegar-se-ia assim ao ‘não lugar’ com todas as distinções e nenhuma distinção entre a cidade e uma sala de aeroporto. Se possível fosse, pois o ‘ideal Brasília’ inevitavelmente esbarra na polifonia da existência. Nem o poeta, nem o arquiteto têm a palavra final. Ao projeto se designa a ordem, ao uso o caos.
29
Sep 08
De volta ao Maraca
Este fim de semana retornei ao Maracanã depois de mais de 25 anos para assistir a vitória do Flamengo sobre o Sport Recife. Situação em que fui tomado por sentimento nostálgico, pois fui assíduo freqüentador do estádio em minha adolescência, prática que a preguiça e a mudança de interesses me fizeram abandonar. Neste período o estádio foi reformado, em tentativa de adequá-lo às normas de segurança (João Havelange teria sugerido que o implodisse). O estádio, que foi construído para receber 150 mil pessoas, reduziu sua capacidade para 80. A arquibancada foi subdividida em setores e ganhou cadeiras cujas cores permitem a identificação das áreas com preços variáveis e, a geral foi eliminada. Quando não havia cadeiras sentava-se em degraus de cimento e, a concentração de pessoas começava em frente ao meio do campo e ia se espalhando para as laterais até chegar no fundo do gol. Era um espaço liso, com áreas definidas pelas torcidas e suas diversas facções. No caso de brigas entre as torcidas, algo que era freqüente, abria-se rapidamente um grande vão graças a.facilidade de deslocamento, o que, obviamente, favorecia tanto a fuga como o conflito.
A nova configuração estanca o movimento e o ímpeto das pessoas. Mas não foi só isso que deixou o povo mais manso. O futebol é hoje um espetáculo televisivo. Os jogadores comemoram o gol correndo em direção à câmera e não à sua torcida. Do mesmo modo os torcedores se comunicam com a telinha e temem serem flagrados. Isso levou aos jogos no Maracanã mais mulheres e famílias.
Por sua vez, a organização do estádio não poderia deixar de faturar com a necessidade das pessoas de tornar publica a sua intimidade. No telão do estádio são veiculadas diversas mensagens de amor envidas pelos celulares presentes, assim como autofotos no local. Não se fala sobre futebol, isso só em mensagens ao Galvão Bueno.
Do lado de fora a bagunça de sempre, mas o metrô facilita muito a chegada ao estádio. O melhor de tudo são os camelôs. É verdade que eles ocupam as calçadas privatizando o espaço público e pereré pão duro, mas eles têm sempre a mão o necessário à ocasião. A coisa certa, na hora certa, não importa como o Universo conspira. Desprevenido que eu estava da chuva pude comprar por cinco reais uma capa embalada num pacote menor que uma carteira.
27
Sep 08
A Biblioteca Nacional em Brasília
Integra o novo Conjunto Cultural da República, recentemente construído no Eixo Monumental em Brasília, uma Biblioteca intitulada Nacional. Sobre a possível constituição de seu acervo já se especulou muitas coisas, inclusive a transferência integral do acervo da velha Biblioteca Nacional do Rio.A naturalidade da ação derivaria do fato do Rio não ser mais capital, portanto uma Biblioteca Nacional não caberia por essas terras. Algo que pode parecer lógico para uma trupe que nos impõe a construção de um prédio público sem função e destino. A transferência do acervo obviamente não decolou.
O conjunto, que além da Biblioteca conta com um Museu também Nacional, foi viabilizado no governo Roriz sob o pretexto de concluir a construção da cidade. Como se uma cidade pudesse ser concluída antes de sua morte. Brasília seria então nascida do desejo de um presidente, criada pelo ímpeto de um arquiteto e finalizada pelo desvario de um governador. Pressupõe-se que seus habitantes nada têm a dizer e não se inscrevem naquela cidade.
Tive oportunidade de conhecer a Biblioteca no início deste mês quando convidado a participar da exposição OBRANOME II no Museu Nacional, que compõe o mesmo núcleo cultural.
Fui até a Biblioteca para ver uma exposição com poemas de Reynaldo Jardim integrante da Iª Bienal Internacional de Poesia de Brasília. A exposição ocorria no 3º andar o único com algum evento (somente a exposição) e pessoas (alunos de escola pública, imputados a preencher eventos culturais, que passeavam no elevador). Os outros andares (são quatro) estavam totalmente vazios. Um funcionário na portaria justificou dizendo que o prédio “ainda não pegou” (??!!). Discute-se agora a possibilidade da Biblioteca se constituir como virtual. Que bom, poderemos ficar em casa ou além.
28
Jul 08
O que faz juntar formigas? Medida de dissolução.
Uma especulação sem dados: não tem muito tempo Luiz Paulo Conde quando era prefeito da cidade do Rio de Janeiro, tomou a iniciativa, com o pretexto de zelar pela boa imagem da cidade, de eliminar certas concentrações de pessoas que considerava indesejadas. Ele queria nos fazer crer que todos os casos deveriam ser resolvidos democraticamente com o uso da lei, sem imposição da força policial.
Em um dos casos, grupos de Pitboys reuniam-se freqüentemente à noite nos finais de semana em frente às lojas de conveniência nos postos de gasolina. Os grupos ali se encontravam e se preparavam para a noite exibindo seus corpos sob a intensa e difusa luz fria, enquanto consumiam um coquetel de energizante, cerveja e gasolina.
A medida de dissolução? Quebra de consistência – a retirada de um dos elementos da composição. O legalmente viável? A proibição de venda de cerveja em postos de gasolina. O argumento ao público? Incompatibilidade entre os elementos álcool e direção. O imperativo publicitário? Se beber não dirija, se dirigir não beba.
A medida mostrou-se (relativamente) eficiente até a primeira liminar.