Cartografia III

Lima Barreto, num conto intitulado “Como o ‘homem’ chegou” em cuja epígrafe transcreve a singela frase de Nietzsche “Deus está morto; a sua piedade pelos homens matou-o”, relata a prisão de um louco pacato, “lá dos confins de Manaus, que tinha a mania da Astronomia e abandonara, não de todo, mas quase totalmente, a terra pelo céu inacessível.” A prisão se deu para dar destino aos regulamentos policiais que “não encontravam emprego” em uma delegacia de “movimento desusado” em “circunscrição” por demais pacata e ordeira.

Quando o delegado, sediado no Rio de Janeiro, recebeu as ordens para que fosse buscá-lo, argumentou que era muito longe. A isto o inspetor retrucou que já se havia verificado a distância no mapa “e era bem reduzida: obra de palmo e meio.” E, assim foi, em distância medida por palmo e polegadas, o carro-forte puxado por um burro “abalando o calçamento, a chocalhar ferragens, a trovejar pelas ruas afora em busca de um inofensivo.” No carro-forte ia, além do cocheiro, um certo doutor Barrado esforçado “por parecer inteligente”, dando a tudo caráter científico.

No fim de quatro anos e doze polegadas da cartografia que se desdobraram em um infinito número de quilômetros, “o carrião entrou pelo Rio adentro, a roncar pelas calçadas, chocalhando duramente as ferragens, com o seu manco e compassivo burro a manquejar-lhe à sirga”. Do ‘Homem’, que não fora no trajeto alimentado, pois os agentes não tinham com segurança uma norma de proceder, chegou o esqueleto.

A instituição cumpriu assim, religiosamente, a fria letra da lei. Do mesmo modo que comprrendeu o mundo codificado pela cartografia.

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